|
Demonstrativo aéreo do percurso - Google Earth |
Pessoal, não podíamos deixar de realizar uma singela homenagem aos nossos colegas montanhistas que realizaram a façanha de atravessar a ALFA CRUCIS! É para os montanhistas e aventureiros paranaenses se orgulharem, mas não se empenharem em realizar o trajeto sem experiência, pois afinal, como disse Elcio, que realizou a travessia: “É tanto mato e tanto morro que não sei se eu mato ou se morro”.
Segue a matéria publicada no site da Go Outside, texto redigido por Pedro Hauk:
"Mato e morro
Dois renomados montanhistas brasileiros completam a mítica travessia Alfa Crucis, no Paraná, em uma aventura grandiosa que durou dez dias e passou por 44 cumes
Por Pedro Hauck
FORAM MAIS DE 50 ANOS aguardando a conquista do feito. Até que, finalmente, dois montanhistas brasileiros conseguiram a proeza, cravando seus nomes na história do esporte no país. Acima de tudo, provaram algo que muitos duvidavam: sim, é possível percorrer com sucesso a maior travessia entre montanhas do Paraná, batizada de Alfa Crucis. Para isso, Elcio Douglas Ferreira e Jurandir Constantino andaram, durante dez dias sem parar, 102,5 quilômetros de trilhas pela Serra do Mar, em uma expedição que alcançou o cume de 44 picos daquele estado.
Uma travessia nada mais é do começar a caminhar em um ponto e terminar em outro, ascendendo uma sequência de cumes. E, por uma série de razões, a Alfa Crucis pode não ser apenas a maior travessia do Brasil como também a mais difícil já realizada em nossas montanhas. A Serra do Mar não têm grandes altitudes – suas montanhas são todas inferiores a 2.000 metros. Essa característica, no entanto, cria condições para a existência de uma densa cobertura vegetal, o que dificulta o montanhismo. O sobe-e-desce é constante, e há todo tipo de vegetação por lá, de florestas com árvores gigantes a charcos que atolam até o joelho. O clima também não colabora, com muita umidade e locais que nunca secam.
Apesar de tantas dificuldades, a dupla mostrou que tem talento, experiência e garra de sobra, como já sabiam gerações e gerações de montanhistas paranaenses. Elcio, que tem 43 anos, usa óculos e não possui físico de atleta, é famoso por andar rápido nas trilhas e por ser um cara que conhece bem os matos do Paraná. Ele é um “rato” da Serra do Mar e prefere melhorar seus tempos em cumes já conhecidos a frequentar outras montanhas Brasil afora. Elcio tem alta capacidade cardiorrespiratória e resistência. E não costuma levar nada na mochila, para andar leve e ligeiro: há anos que não acampa com barraca, não leva fogareiro e limita sua alimentação a amendoim, chocolate e suco de goiaba. Antes de sentir fome, ele já chegou ao final da trilha. Em 2008, fez o cume do Aconcágua, a montanha mais alta dos Andes, em apenas três dias, sem guia, sem aclimatação e sem nunca ter estado lá antes – ele ainda esnobou, chegando ao topo de camiseta!
DESAFIO PARANAENSE: Cenas da travessia Alfa Crucis
Já o montanhista Jurandir Constantino, de 35 anos, é mais discreto e sossegado. Conhece muito bem as montanhas paranaenses, a ponto de ter um cume na Serra do Mar batizado em sua homenagem. O jeitão de “normal” não engana: ele é amigo de Elcio e o único que consegue acompanhá-lo em suas aventuras.
ERA QUASE MEIA-NOITE do dia 28 de junho quando desembarcaram em Bairro Alto, no distrito paranaense de Antonina, três sujeitos com mochilas, botas e roupas surradas que provocaram estranheza entre a população que vive no sopé da Serra do Mar. Apressados, Elcio, Jurandir e o amigo Ivon Cesar (que faria apenas parte da travessia) não tardaram em atravessar as ruas de casinhas simples, construídas para abrigar os trabalhadores da construção de uma usina hidrelétrica na década de 1950, hoje desativada.
Rapidamente os amigos adentraram a floresta pelo caminho abandonado da antiga usina. Atravessaram ruínas de aquedutos e chegaram à antiga picada do Cristóvão, uma trilha de índios de algumas centenas de anos. Em plena madrugada, alcançaram o primeiro cume de sua epopéia, o Guaricana, de 1.530 metros.
Após um breve descanso, o trio rumou em direção ao ainda desconhecido Ferreiro (1.540 metros), morro que só recentemente ganhou uma trilha. No topo, os montanhistas tiveram que abrir uma continuação dessa picada, fazendo a travessia até o próximo pico, o Ferraria (1.760 metros). Foi um longo dia combatendo a vegetação fechada e espinhenta conhecida como quiçaça para, enfim, chegar ao cume do Ferraria, onde passaram a segunda noite.
No terceiro dia, os montanhistas aproveitaram o “luxo” de terem uma trilha para caminhar até o Taipabuçu (1.740 metros). A seguir, escalaram com facilidade o turístico Caratuva (1.860 metros). Descendo aquela montanha pela face sudeste, eles atravessaram a crista, o “elo de ligação” que separa o Caratuva do maciço isolado onde fica o Pico Paraná (1.877 metros), a montanha mais alta do sul do Brasil.
Os três desceram o Paraná por um caminho que para muitos já significaria a aventura da vida e, depois, fizeram o Tupipiá (1.550 metros), acessado por um caminho vertical de “trepa-mato”. Regressando de lá, visitaram os topos de dois outros cumes que compõem o maciço do “PP”, como é carinhosamente chamada a montanha mais alta do estado. À Meia-noite, alcançavam o topo do Itapiroca (1.800 metros) para seu terceiro pernoite.
No quarto dia, o grupo enfrentou uma trilha difícil, pouco frequentada e cheia de pontos confusos: o caminho entre o Itapiroca e o Siririca (1.705 metros), que já fez muita gente se perder. Ao sul da Siririca, há uma pequena serra composta por três cumes – os Agudos da Lontra (1.417 metros), da Cotia (1.456 metros) e da Cuíca (1.350 metros), montanhas com as trilhas mais remotas da Serra do Mar. O grupo pôde então descansar em um planalto com vegetação campestre. Sem árvores para esticar sua lona, único abrigo que levaram para a travessia, tiveram de bivacar ao relento, num hotel “mil estrelas”.
FRIO FAZ PARTE: Jurandir todo encapotado, durante a travessia
DALI PRA FRENTE, A TRILHA PASSA a ser feita em rios. Descendo o rio Forquilha, rapidamente deixaram os campos abertos e adentraram uma floresta pluvial. Como se não bastasse a água gelada, que obedecendo à Lei de Murphy sempre bate na altura do “termômetro masculino”, o leito pedregoso desafiava cada passo.
Com muito faro de navegação, os três conseguiram sair do rio no lugar certo e começar a circular por entre as centenas de trilhas de palmiteiros e caçadores, que praticam suas atividades ilegais à sombra das autoridades. No papel, ali fica o Parque Estadual Roberto Ribas Lange, mas, na prática, não há parque algum. No final da tarde, chegaram à estrada da Graciosa. Ivon Cesar aproveitou o contato com a civilização para dizer adeus à aventura e a suas férias. Elcio e Jurandir, no entanto, sabiam que ainda tinham muito trabalho pela frente. À noite, ficaram perto das ruínas da Casa Garbes, uma antiga mansão de pedra.
Com a ascensão do morro do Sete na manhã seguinte, a dupla começava a realizar a travessia do segundo bloco montanhoso, o da Farinha Seca. Lá, os cumes são próximos, mas entre as montanhas há enormes desníveis, quase sempre superiores a 500 metros. Apesar da dificuldade, a dupla conseguiu atravessar vários picos, descansando apenas à meia-noite do sexto dia, no cume do Morro dos Macacos (1.180 metros).
No dia seguinte, chegaram ao Morro do Balança (950 metros), onde há 15 anos faleceu Oséias Gonçalves Araujo, o “Black”, durante a primeira tentativa de percorrer o caminho, com Elcio. O acidente não foi por acaso: os mais de mil metros de desnível, aliado à inclinação das encostas e ao mau tempo revelaram-se fatais. Superando o trauma, Elcio passou novamente por essa montanha e pernoitou no final do sétimo dia na vila do Marumbi, no começo da última serra que a dupla teria que enfrentar.
O caminho dali em diante teria que ser percorrido na surdina. O Marumbi é o único parque da Serra do Mar com alguma estrutura mas, contraditoriamente, dois-terços de sua área é proibida para visitação. Subindo por uma das trilhas permitidas, a dupla fez mais cinco cumes, entre eles o da Esfinge (1.330 metros) e o Ponta do Tigre (1.380 metros). O fechamento de grande parte do parque a turistas resultou em uma vegetação espinhenta que dificultou muito a caminhada. Nessa noite eles pernoitaram no cume do Pelado (1.512 metros), onde acaba essa trilha.
Com a meta de finalizarem a travessia, a dupla acordou às seis da manhã. Os planos, no entanto, foram por água abaixo. Uma vegetação espinhenta e infernal fechou o caminho completamente. Sem facão, eles tiveram que atravessar a quiçaça rasgando a carne nos bambus e cipós.
Naquela noite a janela de bom tempo se fechou, e o vento não tardou em trazer para a serra toda uma massa de ar fria que descarregou um aguaceiro nas montanhas. Sem barracas, Elcio e Jurandir tiveram que se espremer embaixo da pequena lona. Foi uma noite longa e sofrida. Nas primeiras horas do dia, a dupla estava hipotérmica e teve que lutar para se colocar em marcha. Nada do que eles traziam na mochila estava seco e, para piorar, já não havia nada para comer. Eles tiveram que gastar as últimas calorias para ascenderem morros como o Ferradura (1.404 metros) e o do Canal (1.370 metros), finalizando a travessia no sítio do “seu Toninho”. Não havia ninguém por ali para recebê-los, sem poder comemorar o feito, a dupla ainda caminhou uma dezena de quilômetros até a BR 277, onde foram “resgatados” por um irmão de Elcio, no final do décimo dia de expedição.
VERDEJANTE: Paisagem da serra do Mar paranaense
NA DÉCADA DE 1990, a abertura das travessias da Serra Fina e da Marins Itaguaré, na Serra da Mantiqueira, contribuiu para a consolidação do conceito de travessias em montanhas. Isso incentivou novas aventuras desse tipo pelo Brasil, aumentando os desafios do montanhismo de caminhada no país.
Infelizmente, pouco tempo depois, os parques começaram uma política restritiva, fazendo planos de manejo cada vez mais proibitivos à visitação do público. Como resultado, a Alfa Crucis não podia ser realizada. Uma década e meia depois, com a revisão dessas políticas, diversas travessias antes fechadas voltaram a ser freqüentadas. No Paraná, as autoridades ambientais ainda não estão seguindo a tendência de flexibilizar as restrições, mas mesmo assim os montanhistas locais não desistem de resgatar antigos caminhos e trilhar outros novos.
A Alfa Crucis, por sua enorme dificuldade, não deve se popularizar facilmente. Como bem brincou Elcio: “É tanto mato e tanto morro que não sei se eu mato ou se morro”. Mas, se as travessias fossem incentivadas pelos governos, talvez deixássemos de ver tantos caçadores e palmiteiros ilegais nas trilhas e a Alfa Crucis poderia se tornar um destino turístico, nos moldes da Trilha John Muir, no Yosemite (EUA), uma das maiores travessias do mundo. Enquanto isso não acontece, podemos pelo menos parabenizar Elcio e Jurandir por sua coragem, resistência e paixão verdadeira pelas travessias brasileiras."
Fonte: Go Outside
Valeu Elcio e Jurandir por mais essa conquista paranaense!
Um abraço a todos!
Atte. Equipe Pé na Trilha Curitiba